O Eternauta (2025)

Minha Crítica : O Eternauta (Netflix, 2025)

A série O Eternauta, lançada pela Netflix em 30 de abril de 2025, é uma adaptação ambiciosa da icônica história em quadrinhos argentina criada por Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, publicada originalmente entre 1957 e 1959. Com seis episódios dirigidos por Bruno Stagnaro e estrelados por Ricardo Darín no papel de Juan Salvo, a produção se propõe a trazer para o streaming uma narrativa que mistura ficção científica apocalíptica, crítica social e um profundo estudo sobre a condição humana em tempos de crise. A obra original é um marco cultural na América Latina, carregada de simbolismo político e reflexões sobre resistência e coletividade, e a série enfrenta o desafio de honrar esse legado enquanto se adapta a um público global contemporâneo. Após assistir à primeira temporada, esta crítica busca explorar os méritos e as falhas da produção, analisando sua narrativa, aspectos técnicos, atuações, fidelidade à fonte e relevância cultural, culminando em uma avaliação final.

Contexto e Enredo: Um Apocalipse Argentino

A série se passa em uma Buenos Aires contemporânea, assolada por uma nevasca tóxica que mata instantaneamente qualquer pessoa que entre em contato com ela. Juan Salvo (Ricardo Darín), um homem comum com um passado marcado pela Guerra das Malvinas, sobrevive ao lado de um pequeno grupo de amigos e familiares, enquanto tenta entender a natureza da catástrofe. O que inicialmente parece um fenômeno climático logo se revela como o primeiro estágio de uma invasão alienígena, conduzida por uma força invisível chamada "Mão" nos quadrinhos. A narrativa acompanha a luta desesperada desse grupo por sobrevivência, enquanto enfrentam não apenas os perigos externos — como os insetos gigantes controlados pelos invasores — mas também os conflitos internos, como desconfiança, trauma e a fragilidade das relações humanas em um cenário de colapso social.

A escolha de atualizar a história para os dias atuais, em vez de manter o contexto dos anos 1950, é uma decisão ousada que reflete tanto os desafios de produção quanto a intenção de tornar a trama mais acessível. A HQ original, escrita durante a Guerra Fria, era impregnada de temores de ataques nucleares e críticas veladas ao autoritarismo, que ganharam um tom mais explícito na reedição de 1969. Na série, a modernização traz novos elementos, como o uso de celulares (antes que a energia colapse) e referências à Guerra das Malvinas, mas também arrisca diluir o peso político específico da obra de Oesterheld, que era profundamente enraizada na história argentina.

Pontos Fortes: Produção, Atuações e Atmosfera

Um dos maiores trunfos de O Eternauta é sua realização técnica. Filmada em Buenos Aires com a tecnologia StageCraft (a mesma usada em The Mandalorian), a série apresenta cenários apocalípticos impressionantes, com ruas cobertas de neve, veículos abandonados e uma paleta de cores que reforça a sensação de desolação. A neve, que raramente ocorre na capital argentina, é usada como um elemento visual poderoso, criando uma atmosfera claustrofóbica e opressiva. O design de produção é meticuloso, e os efeitos visuais, embora não sejam perfeitos em todos os momentos, são surpreendentemente competentes para um orçamento estimado em 15 milhões de dólares. Os insetos alienígenas, inspirados nos besouros da HQ, têm um visual que respeita a fonte, com uma textura orgânica que evita o artificialismo de muitas produções de ficção científica.

A direção de Bruno Stagnaro, conhecido por Okupas, é outro destaque. Stagnaro opta por um ritmo deliberadamente lento nos primeiros episódios, construindo a tensão de forma gradual e permitindo que o público se conecte com os personagens antes de revelar a verdadeira escala da ameaça. Essa escolha pode frustrar quem busca ação imediata, mas é eficaz em criar um senso de realismo e imersão. A partir do quarto episódio, quando os elementos fantásticos ganham mais espaço, a série encontra um equilíbrio entre o drama humano e a ficção científica, culminando em um final que, embora aberto, deixa o espectador ansioso pela segunda temporada já confirmada.

Ricardo Darín, como Juan Salvo, é a alma da série. Sua performance é contida, mas profundamente expressiva, transmitindo o peso de um homem comum forçado a liderar em circunstâncias extremas. Mesmo escondido por máscaras de proteção em várias cenas, Darín usa o olhar e a linguagem corporal para conveyer angústia, determinação e vulnerabilidade. O elenco de apoio também brilha, com destaque para César Troncoso como Favalli, cuja racionalidade técnica contrasta com a empatia de outros personagens, e Mora Fisz como Clara, cuja jornada levanta questões perturbadoras sobre controle alienígena. No entanto, Carla Peterson, que interpreta Elena, a esposa de Juan, parece menos à vontade em momentos dramáticos, o que gera uma leve desconexão em cenas familiares.

A série também merece elogios por manter o tema central da HQ: a força da coletividade. Em um mundo cada vez mais individualista, O Eternauta reforça a mensagem de que "ninguém se salva sozinho", mostrando como a solidariedade, mesmo em meio à desconfiança, é essencial para enfrentar adversidades. Essa ideia ressoa tanto no contexto ficcional quanto no atual, especialmente em tempos de polarização e crises globais.

Pontos Fracos: Perda de Nervo Político e Ritmo Irregular

Apesar de seus méritos, O Eternauta não está isenta de falhas. A principal crítica é a atenuação do caráter político da obra original. A HQ de Oesterheld, especialmente em sua versão de 1969, era uma denúncia explícita contra o autoritarismo, o imperialismo e as desigualdades sociais, escrita por um autor que pagou com a vida por sua militância contra a ditadura argentina. Na série, esses elementos aparecem de forma mais sutil, como na menção à Guerra das Malvinas ou na crítica implícita à fragilidade das instituições em crises. No entanto, a busca por uma narrativa "universal" para agradar ao público global resulta em uma perda de especificidade cultural e histórica, o que enfraquece a conexão com a memória coletiva argentina. A ausência de um comentário mais direto sobre a ditadura ou sobre as feridas ainda abertas do país, como os desaparecimentos forçados, é uma oportunidade perdida, especialmente considerando a trágica história de Oesterheld e suas filhas.

Outro ponto de crítica é o ritmo irregular. Os primeiros três episódios, focados na construção dos personagens e na ambientação, podem parecer arrastados para quem não está familiarizado com a HQ ou espera uma narrativa mais acelerada. O segundo e o quinto episódios, em particular, sofrem com momentos de exposição excessiva ou subtramas que não avançam significativamente a história. Embora o ritmo melhore na segunda metade, a série poderia se beneficiar de uma edição mais enxuta para manter a tensão constante.

Por fim, algumas escolhas narrativas, como os "apagões" de Juan Salvo, sugerem elementos de viagem no tempo ou loops temporais que não são plenamente explorados na primeira temporada. Embora isso crie expectativa para a continuação, também deixa uma sensação de incompletude, especialmente para espectadores que não conhecem a HQ e podem achar o final abrupto ou confuso.

Fidelidade à HQ e Relevância Cultural

A adaptação de O Eternauta é fiel ao espírito da HQ, mas toma liberdades criativas que dividem opiniões. A modernização da história, a inclusão de novos personagens e a alteração de certos eventos são justificáveis pela mudança de mídia e pelo desejo de atualizar a narrativa. No entanto, fãs puristas podem se incomodar com a ausência de algumas cenas icônicas ou com a redução do tom político explícito. Ainda assim, a série preserva elementos centrais, como a neve tóxica, os besouros alienígenas e a transformação de Juan em um símbolo de resistência, além de homenagear a estética de Solano López em detalhes visuais.

Culturalmente, O Eternauta é um marco para a Argentina e a América Latina. A série coloca Buenos Aires como o epicentro de uma narrativa apocalíptica, desafiando a tendência de produções sci-fi centradas em cidades do "primeiro mundo". Para os argentinos, ver suas ruas e costumes representados em uma produção de alto nível é motivo de orgulho, como refletido em comentários de fãs no IMDb e em posts no X. Globalmente, a série introduz uma obra seminal da ficção latino-americana a novos públicos, destacando a relevância de histórias que combinam entretenimento com reflexão social.

Minha Conclusão Final, Considerações Finais e Nota

O Eternauta é uma adaptação que impressiona pela qualidade técnica, pelas atuações (com destaque para Darín) e pela capacidade de criar uma atmosfera envolvente. A série honra o legado da HQ ao enfatizar a importância da coletividade e da resistência, mas perde força ao suavizar o nervo político que fazia da obra original um grito de denúncia. O ritmo irregular e algumas pontas soltas narrativas são contrabalançados por momentos de tensão bem construídos e por um final que promete expandir a mitologia na segunda temporada.

Como uma produção latino-americana que compete com blockbusters globais, O Eternauta é uma vitória, demonstrando que é possível contar histórias locais com alcance universal. No entanto, sua hesitação em abraçar plenamente o contexto político e histórico da Argentina impede que alcance o impacto transformador da HQ. Ainda assim, é uma série que merece ser vista, tanto por fãs da obra original quanto por quem busca uma ficção científica com alma e coração.

Nota: 4/5

A série é poderosa e emocionante, mas deixa margem para crescer em ousadia e profundidade na próxima temporada. Que a resistência de Juan Salvo inspire não apenas os personagens, mas também os roteiristas a recuperarem o espírito combativo de Oesterheld.

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